sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
A sinceridade de Sérgio Sampaio
Eu soube que o selo Saravá Discos, do Zeca Baleiro, deve lancar o "Sinceramente", último LP de Sérgio Sampaio, lançado originalmente em 1982.
Dai lembrei de um texto meu que foi publicado no Mono Zine no ano passado. O brother Bruno Abdala tinha me pedido, na ocasião, um texto sobre algum disco que eu curtisse.
Olhei aqui na minha caixinha de emails e vi que o texto foi enviado em 22 de Julho 2008.
Posto ai o texto que é uma tentativa de análise do disco mais confessional e pessoal de Sérgio Sampaio, “Sinceramente”, lançado de forma independente...
PÔR MÚSICA NO AR
“Pouco prazer não é coisa
pro meu coração
que foi feito pra grande paixão
Para os amores maiores como o meu”
(Sérgio Sampaio)
Sérgio Sampaio:
“poeta do riso e da dor ”,
“infinito na vida”
Sérgio Sampaio (1947 - 1994) é catalogado como um artista “maldito” da MPB dos anos 70. Discordo. O considero um poeta “bendito”- um compositor azarado, mas ainda assim “bendito”- inspirado, pirado, deixado de lado, mas que merece ser “recuperado” por sua “bendita” sinceridade. Penso que essa fama de “maldito” se deve muito à mitologia criada em torno da biografia dele, do “doidão” na Lapa, perdido nas ruas a consumir álcool e muita cocaína (a ponto de Raul Seixas se sentir careta se comparado a ele).
Mas, mais importante do que as drogas consumidas por esse anti-herói trágico, é a sua obra singular, que não se vincula a nenhum “movimento” na história da Música Brasileira, que deixa sua experiência e sua visão de mundo registradas em brilhantes canções, que documentam a dor do artista que está sempre à “captura”.
Seu disco mais comentado ainda costuma ser o Eu Quero É Botar meu Bloco na Rua, que tem uma excelente produção de Raul Seixas, amigo de Sérgio, com quem, antes, dividiu parcerias no genial “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10” (1971).
Há alguns anos que eu tinha a curiosidade de ouvir o disco “Sinceramente” (1982) de Sérgio Sampaio, mas nunca o encontrava. Em CD só achei seu primeiro disco “Eu quero é botar meu bloco na rua”, o “Tem que acontecer” (1976) e o brilhante “Cruel”(1994), que foi um lançamento póstumo. Recentemente, um amigo, Lino, me deu uma cópia de “Sinceramente”, que merece ter, logo, uma re-edição em CD.
Quero destacar a sinceridade presente no último LP que Sérgio lançou em vida. “Sinceramente” (o título é o mais perfeito possível) é considerado por muitos seu disco mais confessional, foi lançado de forma independente e financiado pela família da esposa (na música “Sinceramente”, inclusive, ele canta: “Não há nada mais bonito do que ser independente”). Esse disco foi produzido em um momento marcado por seu desaparecimento da cena musical, no fim dos anos 70 e começo dos 80.
É um disco que expressa a dor de um indivíduo solitário, triste, que já aprendeu muito na vida, mas que não pensava em desistir. Quando escuto tenho a impressão, em vários momentos, de ouvir (ouvir é mais que escutar, pois é uma forma de compreensão) um sujeito que passou por muita coisa, mas que agora está resolvido consigo ou, pelo menos, tentando.
O som é vazio, com muitos dedilhados e poucos instrumentos na maior parte do álbum, mas penso que combina com o vazio abordado em letras realistas (uma dura realidade), que documentam bem a realidade vivenciada por Sampaio na época. A sonoridade simples, com espaços entre os as notas nos trás a sensação de dor e solidão. Tudo ali parece fazer parte de um todo para completar a letra que segue a mesma intenção de se ver como realmente somos: sozinhos dentro de nós. São “grandes” composições, densas e maduras, reunidas em um disco sem uma “grande produção”, mas que tem o seu valor (dentro e fora do contexto).
O disco começa com a confessional “Homem de Trinta”, que já na primeira parte da letra indica o limite já vivenciado pelo artista:
“Quase que eu fui pro buraco
Por pouco não fui morar no porão”
A figura poética do “porão” já havia sido utilizada na canção “Que loucura”, lançada no disco anterior, em 76. Luiz Melodia, que gravou essa música, me disse que o eu lírico de “Que loucura” é o poeta Torquato Neto:
Tô maluco da idéia
Guiando carro na contramão
Saí do palco e fui pra platéia
Saí da sala e fui pro porão
A imagem do “palco” também aparece em outra canção de “Sinceramente”, “Só para o seu coração”, em que ele se declara para uma mulher que o faz “infinito na vida”:
Mais do que cantar pra o mundo inteiro
Eu quero cantar primeiro
Só para o seu coração
Mais do que este palco iluminado
Eu quero esse delicado
Contato da sua mão
Mas, voltando a “Homem de Trinta”, Sérgio nos diz que, agora (no momento em que cantava aquilo) está com os olhos mais claros- depois de “um tempo nisso” (será que esse “isso” é o seu próprio ofício de compositor enquanto “jornalista de sua própria dor” ou o mundo do vício?). A banda entra quando a letra fica mais “pra cima”. De alguma forma, ele demonstra ser um homem maduro, calejado, mas com uma pitada de otimismo, sem ser bobo, ao expressar sua insistência e seu amor à vida:
Eu me descubro, amor, dentro do vício
Maravilhosamente a renascer. . .
Amando a vida como ama
o empalhador um pedaço de pau
o pescador o seu rio
e o sofredor sua mulher fatal
No fim da canção ele indica a lucidez de alguém que não quer mais “barra pesada” (cocaína...), de alguém sozinho (no sentido de estar “sem bando”), mas que não quer a solidão e ama sua esposa, como se vê:
Tenho tomado algumas
E tenho amado uma mesma mulher
Eu tenho andado sem turma
Mas solitário eu sei que não dá pé
Na segunda música do LP ele conclue que só existe pra estar “na captura”. E fala, novamente, da solidão, nesse trecho que considero ser um dos mais autobiográficos, pois faz referência até à sua sombra magra:
A solidão que me acompanhava
Quando eu ia da Lapa à Copacabana a pé
Na captura da pessoa que pudesse ser tão boa
Pra encher esse vazio, fruto dessa solidão
É a mesma desse meu apartamento
Quando o meu carro vermelho
Onde quer que se encontre
Essa minha sombra magra
Enchendo todas as pontes
Que vão dar no coração
Outra pérola é a emocionante “Essa tal de mentira”, que com uma musicalidade intimista canta (e encanta):
Ah... Quanta dor que me causa essa tal de mentira
E o pior de disso tudo é que sempre me inspira...
A dor de ser enganado me rouba, me tira
Fascina-me a capacidade desses compositores, como Sérgio Sampaio, Tom Zé e Luiz Tatit, que sabem trabalhar a rima, a palavra e a melodia e dando um sentido muito pessoal pra tudo isso. Nessa música sobre a mentira, ele exprime que agarra o seu violão, que lhe dá forças, e, novamente, o clima de desilusão dá lugar a uma vontade de continuar, como se vê na última parte dessa música (que me inspira a continuar tentando também):
De novo recomeçar
Outra vez acreditar
Compor, escrever, cantar...
Pôr música no ar
Música no ar
Música no ar
Música no ar
Pra mim, Sérgio, apesar do sucesso do refrão “Eu quero é botar meu bloco na rua”, foi um artista que tem seu maior valor no detalhe de sua obra, na frase escondida, em cada palavra bem pronunciada e não no que está explícito. O disco é recheado de detalhes que se configuram em grandes momentos, como a frase: “em matéria de amor, sou aquele que vive” e em fortes expressões poéticas, como “movimentos tão sábios” ou “cego sem guia”. Podemos considerar Sérgio, usando suas próprias palavras, “um poeta do riso e da dor” (na música “Tolo fui eu”, em que separa bem a primeira da segunda parte, quando admite que ela que é a tola e ele o tolo quando quiz em vão dar o amor). Ele nos passa confiança, e conforto por saber que não estamos sozinhos com nossa dor.
No disco em questão, Sérgio explora a temática da dor de quem vivencia a sensação de solidão e lucidez, como canta na excelente canção de 1 minuto e 20 segundos definitivos, “Sinceramente”: “Não há nada mais sozinho do que ser inteligente.”. Sobre essa solidão podemos dizer que ela estava presente até no seu processo de composição, pois teve poucas “parcerias”: a maior parte de seu repertório é composta por canções que ele compôs sozinho. Nesse disco só tem uma parceria, com o amigo e xará: Sérgio Natureza, que também compôs com ele a fantástica e cruel Roda Morta (Reflexões de um Executivo), lançada no cd Cruel. No disco de 82 a parceria é a “Cabra cega”, que é um apelo com imagens poéticas, para um insensível abrir os “olhos do coração”.
Com uma profunda sensibilidade em relação à vida, o Eu lírico parece ser o próprio compositor expondo suas feridas, como na música sobre um cara resolvido em não voltar com uma mulher , “Nem assim”, que é um dos momentos mais intensos do disco., daqueles em que a letra e a música falam por si:
Você pode dizer o que quiser de mim
Que nada do que diga me fará voltar
Pode inventar mentiras e até publicar
Dizer q eu não sirvo mesmo pro amor
Que eu sou um narcisista e um mal compositor
Que se eu morrer agora ninguém vai chorar
Que os vícios da cidade toda estão em mim
Enfim, que foi você quem em abandonou,
E por tantas razões que nem dá pra lembrar
E sem contar as vezes em que eu lhe bati
Pode botar no rádio e na televisão
Não... nem assim
Nem assim...
Você pode chorar no colo da mamãe
Dizer pros seus irmãos o quanto eu fui ruim
Chamar toda a polícia para me prender
Chegar com advogado e ordem do juiz
Pode fazer comício nas praças do rio
Em nome da dignidade da mulher
Mostrar pra todo mundo as marcas que eu NÃO fiz
Provadas no instituto médico legal
Pode botar meu nome no SPC
Dizer que eu não paguei as jóias que 'cê quis
Você pode dizer o que quiser de mim
Nem assim
Nem assim
“Nem assim” é uma canção brilhante com um direcionamento, em que a primeira frase é fundamental para definir o sentido do resto. Hoje nenhum cantor “romântico” tem a ousadia de colocar expressões “Instituto Médico Legal” e “SPC” em uma música de amor.
Após “Nem assim”, que expressa um certo ressentimento com um amor que não deu certo, vem aquela que é a faixa mais otimista (no trava-língua da letra e no suingue do som) do disco, “Doce melodia”, que tem a participação do amigo “negão” (conforme Sérgio fala): Luiz Melodia, que canta junto no refrão: crente que “melhores dias virão”.
Ainda pensando sobre a genialidade que está nos detalhes da obra, achei fantástico o sarcasmo de terminar um disco tão pessoal e denso assim com a bem humorada “Faixa Seis” (que foi a sexta faixa do lado b- no cd seria a faixa 11), que indica uma “melhoria” no estado de espírito:
Você hoje pra mim
Está completamente resolvida
Você hoje pra mim é a faixa seis
Do lado B
Do meu último LP
Aquela que o programador do rádio nunca toca
Aquela que o divulgador do disco evita
Aquela que fica espremida entre a quinta
A quinta faixa e o final da fita
Essa genial “Faixa Seis” acabou, realmente, sendo a última faixa do último LP, que ele lançou em vida. Um disco que dá indícios de que ele estava resolvido consigo em sua maturidade, apesar do sofrimento ainda presente. Depois desse disco e de não emplacar mais uma vez, Sampaio foi para a Bahia onde, segundo a biografia, conseguiu reencontrar a paz de espírito, parou com as drogas e sonhava em retomar a carreira (musical). Mas não teve tempo. Vítima de uma vida sem regras, Sérgio Sampaio morreu em maio de 1994, após sofrer terrivelmente com suas crises de pancreatite. Mas a história continua mesmo depois de sua morte na memória de seus admiradores e no seu primeiro CD “Cruel”, que foi sua “quarta obra prima” (mas isso já é outra história...), que traz canções inéditas que já apresentava nos bares.
Pouco tempo antes da morte fez alguns shows em Goiânia, que é recordado por nomes que batalham na Mpb do Estado. Na ocasião foi até entrevistado pelo compositor e jornalista Carlos Brandão (que lamenta ter gravado outras coisas sobre a fita que usara pra entrevistar. Brandão fala que ele estava bem humorado e que falou à beça) e ficou hospedado na casa do Pádua, com quem compôs a canção “Mestiço”. Dênio de Paula relembra emocionado, pois também é fã, de tocar nessa época a “Filme de Terror”. Todos que converso sobre Sérgio me falam dele como um cara extremamente talentoso, genial e carismático.
Sérgio nasceu na mesma cidade do “rei” Roberto Carlos (para quem compôs a sarcástica “Meu Pobre Blues”, lançada em um Compacto simples em 1974), Cachoeiro do Itapemirim (ES). Conforme Vitor Lopes, em um artigo do site overmundo, a irmã Mara lamenta saber que Sérgio Sampaio está esquecido, que não é nome de rua, não é nome de praça, não é nome de escola, não é lembrança de nada. E, segundo Rodrigo Moreira, autor do livro "Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua", a biografia de Sérgio Sampaio, que fala, entre outras coisas, de sua controversa relação com a imprensa, pior que a censura imposta pelo governo era a censura da mídia.
Concordo com meu amigo Mário Costa: o que falta em muita música hoje é o que sobra em “Sinceramente” de Sergio Sampaio, que é, justamente, sinceridade, verdades e sentimento. Mário, que é químico, diz:
“O álbum “Sinceramente” é realmente um dos relatos mais sinceros que já ouvi de uma pessoa madura, que sabe que o tempo passou para se também e que o mundo já não e mais o mesmo, com o tempo as coisas perdem um pouco de seu brilho.... (oxidação).”
“É um disco para poucos, pra quem sabe sentir o vento soprado do bater asas de uma borboleta” complementa Mário, que é fã incondicional da obra de Sérgio. Em um mundo cada vez mais burocratizado e frio: sinto que Sérgio faz cada vez mais falta.
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DISCO: SINCERAMENTE
ARTISTA: SÉRGIO SAMPAIO
ANO: 1982
MÚSICAS:
1
Homem de trinta
(Sergio Sampaio)
2
Na captura
(Sergio Sampaio)
3
Tolo fui eu
(Sergio Sampaio)
4
Só para o seu coração
(Sergio Sampaio)
5
Essa tal de mentira
(Sergio Sampaio)
6
Meu filho, minha filha
(Sergio Sampaio)
7
Cabra cega
(Sergio Natureza - Sergio Sampaio)
8
Sinceramente
(Sergio Sampaio)
9
Nem assim
(Sergio Sampaio)
10
Doce melodia
(Sergio Sampaio)
11
Faixa seis
(Sergio Sampaio)
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2 comentários:
muitissímo obrigada por ter me aplicado... já faz um mês, acho, que escuto todos os dias...
belo artigo, será um dia estarão fazendo um artigo sobre vc dieguito? seria merecido, não um artigo pra alguém injustamente esquecido... mas para alguém genial!
Boa Diego!! Lembrar que o belo é simples, é sempre importante!!!
E sua música a cada dia que se passa fica mais simples...
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