sábado, 31 de janeiro de 2009

Memórias do golpe de 64 (Nelson Werneck Sodré)

“Só quem perdeu, algum dia, a liberdade, pode avaliar quanto ela vale.” (pág. 34)


"A realidade é composta desses lados contrastantes: o lado dos que têm algo a dizer e não encontram lugar e oportunidade, e o lado dos que têm lugar e oportunidade e nada têm a dizer" (p. 179)



"Tratava-se, no fim de contas, mais uma vez, do conceito de liberdade, honrado em abstrato, normalmente, pelos intelectuais, no individualismo que os aperta, na solidão do trabalho que executam, no valor desmedido que transferem ao resultado desse trabalho, na vaidade que, por isso mesmo, os atormenta. O operário que não tem vaidade da mercadoria que produz; ela lhe é alheia- alienação já estudada e definida- e não se lembraria de orgulhar-se por tê-la produzido. O artesão, ao contrário, tinha, porque podia ter, vaidade do que produzia: ele estava pessoalmente ligado ao que cria; o que ele cria é um pouco de si mesmo. E ele cria em esforço individual, quase sempre solitário; sua obra carrega um pouco do criador, está ungida do que ele pode comunicar, de sua força criadora. O invidualismo do artista, assim, não é uma espécie de maldição, de pecado. Decorre de condições objetivas e de condições subjetivas. A esse individualismo está ligao a concepção abstrata de liberdade" (pág. 190)



"Depois que alcança, ainda que simplesmente por antiguidade, certa notoriedade, ocupando espaço na área artística, não pode o indivíduo escapar às contingências que a cercam, particularmente em fases como aquela que estávamos atravessando. Quem trabalha para o público- escritor, jornalista, autor teatral ou de cinema- está sujeito às suas manifestações: há sempre quem goste e quem não goste. É uma contingência. Quem escolhe atividade desse tipo sabe que pode ocorrer desaprovação. Não há que se aborrecer alguém por isso. Nos domínios da crítica, o problema é, puco mais ou menos, o mesmo. Neles, entretanto, é fácil distinguir a divergência da maledicência, da malevolência. É aceitável que o crítico não goste de um livro; já não é aceitável quando a razão de sua discordância independe do livro e reside no fato de que ele não gosta do autor. (...) Ninguém pode caminhar pelos tortuosos caminhos de uma atividade feita para o público sem se arriscar a receber a mordida de um cão raivoso, ou a pedrada insólita de um esquizofrênico, ou o bote traiçoeiro de serpente que se pisou inadvertidamente." (pág. 246-247)


“Não sei se uma ou duas vezes, mas sempre envergonhado, não por mim, mas pelo nível a que via baixar, em meu país, a visão das coisas, ainda as mais simples. O interrogante- nesse caso particular, bem educado, quanto ao trato- sentia-se investido de autoridade ilimitada e dotada do sentimento de quem está realmente salvando a civilização, a pátria, a família. Apesar de seu trato ameno, via-se que julgava mesmo os “indiciados” ou corruptos, isto é, vigaristas, ou subversivos, isto é, indivíduos de maus princípios, bandidos perigosos para a ordem social. (...)E o que se passava era triste. Em primeiro lugar, destacava-se o ódio ao operário: o crime inexpiável do ISEB era o de ter ensinado a operários, ter feito conferências em sindicatos. Outro crime abominado: ter ensinado a estudantes, o estudante era qualificado como arruaceiros. Terceiro crime: ser jovem. Carga pesadíssima recaía sobre os meus assistentes: eram jovens e, pela idade, não podiam- salvo por “subversão”- lecionar em instituto de pós-graduação e ainda menos a ser autores de livros que o Ministério da Educação e Cultura apreciava e até pagava. Roberto Pontual não deveria ter sido nomeado para o cargo que exercera por ser jovem” (p. 67-68)



“Evoluindo muito, em minhas idéias, mudando-as constantemente, guardei, entretanto, ao longo dos anos e da aprendizagem, uma linha de coerência que acabou por marcar a minha fisionomia intelectual. Eu me desenvolvi, num processo dialético, mas sempre no mesmo sentido. Minhas mudanças, depois que ultrapassei a adolescência, nunca foram de rumo.” (p. 198)


“O ambiente do país era de treva: a cultura era espezinhada, desmoralizada, acusada de infamante; os intelectuais eram presos, maltratados, perseguidos; a atividade deles era censurada e violentada- reinava, em suma, o terrorismo cultural. Foi, apesar de tudo isso, o grande momento da intelectualidade brasileira, que resistiu bravamente e lutou com energia, e até com alto nível de unidade, contra a fúria obscurantista que se estendera a todo o país, cobrindo-o como sombrio e sufocante manto. A intelectualidade dispunha, naquela fase- o que a diferencia daquela em que vivemos (ou apenas substituímos) na fase atual, quando escrevo -, de condições razoáveis para a resistência: o rádio e a televisão estavam fora de seu alcance, controlados já pela reação policial, mas dispunham, dentro de certos limites, do livro, do teatro e, principalmente da imprensa.” (pág. 128)



"Nada mais difícil do que a escala de valores; ela define o nível da cultura. Gide recusou os originais de Proust, como é sabido; Proust atravessou os tempos e Gide está sendo esquecido. Perceber o novo- e não a simples novidade, a ela reduzida-, é raro. Mas é essa capacidade para distinguir valores, e para ordená-los em escala, que caracteriza o indivíduo. Porque o meio, o tempo, a época, quase sempre julga com acerto. " (p. 181)

(trechos do livro de Nelson Werneck Sodré : "A Fúria de Calibã: memórias do golpe de 64")

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