domingo, 8 de agosto de 2010

Crônica nº 2

quando bêbado, vôo mito1


Meia noite e quatro e ele ali... um qualquer concentrado na sinuca, em uma segunda qualquer de um dia qualquer. Aproveita o seguro desemprego e a liberdade da solidão, sem saber se seu caso é angústia, tédio ou depressão.

Sempre tem alguém faturando com a solidão de um ninguém num bar”, pensa ao olhar o olhar distante da senhora na mesa ao lado. Entre um gole de cerveja e outra tacada, conjectura sobre a vida:

  • A sinuca é a arte da exatidão, um poema concreto. A vida é inexata; porém, assim como a sinuca, é um jogo em que também se deve contar com a sorte, com o imprevisto e com o erro do outro. Sabe qual é o “segredo do sucesso”? O fracasso de alguém. Essa é a jogada. O Fred 04 já matou a charada: “Ou você explora o próximo ou o próximo será você”.

Após outra derrota (pro brother de sinuca) sai tranqüilo, acostumado com o fracasso. Vai prum hotel vagabundo, esperar o dia amanhecer – nesssa hora da madruga, já não há mais ônibus. Não há mais nada, aliás. Outra data já chegou e o dia ainda não amanheceu. Já é o futuro e parece que nada mudou. Será que o po(RR)eta Leminski (bandido que sabia latim) estava certo com seus versos: “apenas o mesmo OVO de sempre/ chocando o mesmo NOVO”? Ou fico com o filósofo Vieira Pinto: “O novo de cada dia só se torna visível algum dia”? Não há tempo pra pensar, aqui.

Há sono. Antes de desmaiar naquela cama (“usada” horas antes por um respeitado empresário da cidade e seu garoto), mija e olha (o que vêem) o que resta de si, no espelho. Lembra-se de trechos de duas músicas, ao ver-se, NÚ, no silêncio: “O espelho é o retrato que nunca mente” (Zé Rodrix). “O banheiro é a igreja de todos os bêbados” (Cazuza).

Dorme. O sol nasce. Acorda e se pergunta a banalizada questão existencialista, cantada por uma dupla sertaneja “ONCOTÔ?”. Não sei, mas deve achar o sentido. O sentido pra casa. Caminha até o ponto e o ônibus o pega.

O estômago se embrulha. Vomitar? “Não posso”. Segure. “Vou vomitar”. Não pode. “Aqui no ônibus não posso”, pensa.

Ao redor da tragédia do inútil: vários seres (senhores e senhoras, úteis utensílios) vivem suas tragédias particulares, determinadas socialmente. No ônibus (espaço social sem sociabilidade) cada ser, suando, na sua. Ninguém se pergunta a velha “Pronde vou?”. Só pensam em chegar logo, resolver logo pra, logo, voltar logo. Esse é um logos dominante: acordar com vontade de dormir, ir com vontade de voltar.

Vontade de vomitar. Nojo. Porém não pode. Outros no ônibus com outros nojos – do tarado que se esfrega, do pedinte bebum, da vida morimbunda e, principalmente, do próprio fato do trabalhador ser tratado pior que gado.

Nosso protagonista puxa a cordinha. Desce desesperado. “Não aqui na avenida comercial”. Caminha segurando a explosão gósmica.

Cheguei na rua da minha casa!”. Aqui? Menos ainda, meu caro. “Meus visinhos não podem assistir minha decadência em plena terça”. Isso! Cê não é mais criança! E assim, olhando o olhar alheio, sentindo o inferno do big-brother na pele, carregando todo o sofrimento humano no estômago e à beira do “splach!”, ele sobe a rua. Repressão civilizacional até o último momento.

Gostinho de vômito já aponta na boca. Destranca o portão. Vomita no alpendre de sua casa.

Enfim, a liberdade do lar, doce lar.


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1 O Título vem do poema (inédito) “Volátil” de Pio Vargas :


“Quando bêbado, vôo

mito

nas asas

de um bu-

teco-teco.”



Nota: Um grande abraço ao escritor Luiz Sampaio, aos produtores Juliana Marra e Kaio Bruno e ao professor João Alberto, por se manifestaram sobre a "Crônica do Criolo Doido", da semana passada! O incentivo à iniciativa é sempre bem-vindo!




Escoliose Crônica

(publicado no jornal Diário da Manhã, em 08 do 08 de 2010):

http://www.dmdigital.com.br/index.php?edicao=8306&contpag=1


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