quarta-feira, 31 de março de 2010

Ela

Ela

(Nigger of the word?)

Ela acorda cedo, sem dormir bem, com vontade de dormir mais. Na realidade, com vontade de voltar (...) a sonhar (mas...). Simplesmente, com vontade de vontade. Ao lado: ele ronca sem parar, sem parar, sem parar. Às vezes, ela pensa em parar. Mas pára logo de pensar nisso. Precisa levantar, escovar os dentes e repetir o mais do mesmo, do menos, do mas, de ontem, de sempre.

Ela faz o café pra toda a casa – pra “sagrada família”. Todos comem sem, ao menos, agradecer. E o dia, enfim, começa assim, sem um mero obrigado e cheio de obrigações. Quando jovem ela curtia o rock brazuca e gritava (o que pensa agora): “A gente não quer só comida”. Hoje coça a nuca e murmura: “É a vida...” Lá pelo fim dos anos 80 um “estrangeiro tropicalista” definiu bem a questão na síntese do verso:

O macho adulto branco sempre no comando.”.

Ela deixa as crianças (razão de sua vida) na escola e vai trabalhar – como se preparar o café não fosse, também, um trabalho. No caminho ela vê pichado em um muro o pré-(pós?)-conceito masculino (no comando): “o melhor movimento feminino é o dos quadris”.

Ela chega no serviço e ele, o dono (sempre no comando), exige soluções. Ela, à disposição, resolve. Ela sempre se vira. Ela dá um jeito, sempre. Ela só não ganha mais, pois não é “ele”. Só que isso ele não admite. Não admite o que Tom Zé admitiu em seu estudo do pagode, que converge com o que John Lennon cantarolou em “Woman is the Nigger of the World”.

A mulher (ainda) é o escravo do mundo (pegunto-me)? Ela, inscrita nas palavras (e na vida) de Anna Akhmátova, de Lispector e de Pagu. Ela: gravada nos discos de Elis e cravada nas composições escandalosas de Angela Rô Rô. Aquela do estilo de Coco Chanel. Ela, “mulher de Atenas”, apenas. Mas ela, também escolhida a dedo, por eles, para ser a BBB que será a capa do mês, “para eles”. Ela, que quer seguir “como um pájaro libre”, voando na voz de Mercedes Sosa. Ela sonhando com a liberdade feliz da “ovelha negra” Rita Lee (há mais de 30 anos com o mesmo homem, seu “doce vampiro” – o segredo: “banheiros separados”). A mesma Rita, mutante-gênio-rainha do rock que pediu em sua canção de amor pra lhe botar “de quatro no ato”, nos diz:

Toda mulher quer ser amada

Toda mulher quer ser feliz

Toda mulher se faz de coitada

Toda mulher é meio Leila Diniz”.

Mulher, que após nove meses, sente toda a dor e a alegria de ser mãe. Aqui, aproveito esse espaço para agradecer a minha própria mãe, por sua vida, por minha vida, por ser o alicerce simbólico e prático de nossa casa, por ser meu “pãe” (pai + mai), visto que meu pai se foi quando eu tinha 10 anos e minha mãe, com muita fé e força de espírito, conseguiu manter-se firme na sua luta pessoal.

A mulher ocupa, hoje, postos na política e em vários setores da vida social, que antes eram praticamente exclusividade masculina. Antes só falavam que “atrás de um grande homem tem uma grande mulher”. Hoje o quadro muda, quando vemos a atuação pública de grandes mulheres, também. O que, sem dúvida, é uma mudança positiva e qualitativa.

Na TV dizem que a luta feminista avançou. A lei Maria da Penha (elogiada em música cantada por Alcione) é outro grande exemplo. Mas, quantas ainda tem medo da denúncia? O mano Caetano, aquele “estrangeiro” lá, chegou a dizer-nos que tem inveja dos orgasmos múltiplos. Mas ainda fica a pergunta no ar: Quantas mulheres dormem sem gozar? E você, amiga leitora, há quanto tempo não? Há quanto tempo não ouve um simples obrigado por suas atividades diárias?

Tudo bem. A luta avançou, mas continua... em uma realidade onde a mesma atitude do homem “garanhão” é a da “puta vagabunda”, na visão de muitos. É claro que o feminismo bruto é burro. Trata-se, então, de lutar por um humanismo pleno, que integre a beleza feminina, ao contrário da luta isolacionista, sectária.

Alguém duvida que ainda vivemos em mundo, predominantemente, machista?

Ela (aquela do primeiro parágrafo), por exemplo, chega em casa, exausta e tem que enfrentar uma pilha de vasilhas pra lavar. Acha que a vida é só pra se levar. Segue à risca o conceito de “mulher submissa” pregado constantemente por templos mil, nas esquinas mais hipócritas de nosso “Brasil varonil”. Ela vive entre o emprego e o trabalho sem ter sequer o direito de reclamar. E tem que se contentar por ter um dia (dos 365) em sua homenagem. Sua vida circular une este parágrafo ao primeiro. Sentindo “todo o peso do mundo em suas costas”, calando a dor no peito, e...

ainda tem que fazer sexo.



Texto publicado no jornal "O Pequi",
n. 1, Goiás, março de 2010.

Um comentário:

PÓ DE SER disse...

brutal é o texto, falando de tanta delicadeza.
toda mulher deveria ler isso, mais que isso, todo homem tinha que entender isso!
ta lindo.